domingo, 24 de dezembro de 2006

schiele


celebremos as migalhas
disso que chamamos
amor
embora eu saiba
serem tristes nossas vestes...

noite feliz
noite feliz

olhai por mim
nisso que chamas

embora eu não saiba
acreditar mais em ti...

oh, senhor
oh, senhor

sábado, 9 de dezembro de 2006

guadalupe aparicio

com o terço nas mãos
tendo a fé solidificada por setenta e dois anos
de inabalável devoção
aquela senhora orava sobre o corpo do filho
e soluçava e tremia e desesperava-se nas entranhas

sem entender os desígnios de deus.

segunda-feira, 27 de novembro de 2006


naranjo
passo após passo, sem titubear
alcance o final do corredor
tendo só a ti como companhia:
é preciso deixar as vozes quietas
em respeito ao pesar dos dias consumidos
porque por lá muitos passaram
mesmo que totalmente em vão
e eis a sua vez de saber
às preces, a morte não escuta não.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006


são pássaros noturnos
cantando tristeza
não são anjos não

são migalhas cuspidas
na tua fé inabalável
não são preces não

(padece em silêncio, pobre coitado)

deus nunca esteve aqui

sábado, 4 de novembro de 2006


chuva plantando nascentes
águas encurtando o caminho
por onde tristes mulheres
seguem destinos à margem
dum rio de vestes escuras
(imagem de susannah baker)

quinta-feira, 26 de outubro de 2006


sob o jugo do outono
rogarei por vós até o fim,
deus triste
sem que precise do teu perdão
(minhas mãos nasceram sujas de sol)

terça-feira, 17 de outubro de 2006



deus tinha um hálito forte
o peito peludo
as mãos enrugadas
e sujeira debaixo das unhas

deus era pai
invadindo-lhe o quarto
naquelas madrugadas sem data
que a memória não soube apagar

deus gozava no seu rosto
apertava suas coxas
sussurrava ao seu ouvido
chamando-lhe de filha


(deus não existiu -
era uma farsa vestida de nunca mais
era um refúgio repleto de nojo
- um mundo desnudado de amor)

suas preces não foram atendidas
e seus gritos ocos, de tão mudos que eram
pelos olhos medrosos da mãe
sequer foram notados

sábado, 7 de outubro de 2006


rogo por ti
e só por ti
(abandono o peso de deus)
aos espíritos que clamam perdão
engolidos pela quietude
da fundura do rio

domingo, 1 de outubro de 2006


este resto de prece
que agora deixo aos teus pés
agarra-o com fervor
é teu único caminho
tu, a quem a solidão mete medo
tu, que preferes crer
ao final não estares só
terrivelmente só

domingo, 17 de setembro de 2006

eduardo naranjo
tuas mãos têm a idade do medo
trancadas por dentro da fé
colecionam quinquilharias
limpam a poeira dos quadros
viram as páginas dessa história
envelhecendo de hora em hora
apegadas ao que ficou preso
nas cores dum outro entardecer


são feitas de misericórdia, as tuas mãos
atiram esmolas aos pedintes
acenam esperança aos moribundos
conduzem à luz os desesperados
alimentam pacientemente os enfermos
estancam o fluxo nervoso da dor
mas não sabem afagar os anjos
que escapam do céu ao anoitecer

(és o deus que me vigia
os passos
o bufão que me perdoa
os erros
a mentira que me preserva
a sanidade
o sopro de loucura que me suspende
a vida)

quarta-feira, 6 de setembro de 2006


não sei rezar
as palavras
descrêem em mim

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

nas preces ribeirinhas
estrela cadente traz segredo
para deus lembrar de nós
que de joelhos escrevemos
caminhos mata afora
na penúria dessa vida

esmagada pela cidade grande

quinta-feira, 10 de agosto de 2006


CANÇÃO MURMURADA

creio nas primaveras
creio no reverso da tua dor
– quando do céu arrancas poesias –

creio nos outonos
creio na esperança feita de chuva
– são tuas as vestes que me trajam de sol –

segunda-feira, 31 de julho de 2006


magritte
quem és tu, poeta
escondido em palavras
temeroso
(teus olhos insones
não bastam)
.
curva-te, poeta
pelas contusões da tua alma
pagarás
(tuas preces caducas
desabaram)
.
sabes nada, poeta
das tripas o refúgio
encontrarás
(teus sonhos infantes
sepultados)

terça-feira, 18 de julho de 2006


chagall
ajoelha
contempla
escuta
os espíritos
lá do fundo do rio
porque eles sabem de ti
porque eles sabem de ti

sábado, 8 de julho de 2006


patrice besso
eu vi a cara do tempo
e soube dentro dos ossos
que era hora de virar paisagem
& saltar nas folhas em branco
do meu caderno de desenho
pra ser rio sorrindo peixes
pra ser pedra estancando a dor
pra ser libélula guardando silêncio
antes da primavera chegar

quarta-feira, 28 de junho de 2006


se o teu silêncio
é a resposta às minhas preces
e a tua indiferença
a medida da tua benevolência

se a minha fé
é a garantia da tua existência
e os meus temores
os alicerces do teu reino

de ti eu nada quero
por ti eu nada faço
sem ti eu me liberto
e minhas sobras
serão o teu teto

domingo, 25 de junho de 2006


desenhe um domingo
abra o quarto dos brinquedos
traga sorrisos e os sons da chuva
junte-se aos segredos das formigas
ao vôo das libélulas
aos urubus que recortam as nuvens

porque ainda há tempo
porque ainda é nascente
a esperança ribeirinha de belém do pará

sexta-feira, 16 de junho de 2006


ajoelhei-me para saber do silêncio,
as preces famintas de chuva
e esperançosas de rio.
*
tudo ao meu redor
estava menor antes
minha imensidão é a falta de ti.
*
o prenúncio dos meus mortos
é a sobrevida da primavera
que deságua longe daqui.
*
[meu deus pisa a relva com pés descalços
tem mãos frágeis que já não choram
&
muito medo de saber-se só]

segunda-feira, 12 de junho de 2006



eu só peço um momento
de candura e imensidão
pra acolher os meus medos
e trazer de volta o rio de águas barrentas
que um dia os pés do meu deus banhou

sexta-feira, 2 de junho de 2006


Por quanto tempo mais, Senhor
Essas águas levarão
Pra longe daqui
Tudo que eu amo?

Diz-me, Senhor
Mesmo que em silêncio
Pois eu preciso de um sinal
Que me erga e me faça crer

Eu queria redenção
E você trouxe abandono
Eu queria esperança
E você trouxe rancor

Por quanto tempo mais, Senhor
Haverei de ser esse arremedo
Essa fratura exposta ao nada
Esse eco tragado pelo vazio?

Diz-me, Senhor
Mesmo que em desgraça
Pois eu preciso de um momento
Que me arranque daqui

Eu queria amor
E você trouxe desprezo
Eu queria quietude
E você trouxe solidão

sexta-feira, 26 de maio de 2006


a lua sabe do silêncio
o silêncio sabe de ti
da tua alma
dos teus segredos
dos teus medos
das tuas ilusões
e das brincadeiras que um dia teus filhos
brincarão
mas tu ainda esperas
por esse deus que só traz abandono e miséria
por esse deus que descansa enquanto sofres
por esse deus que não registra os mortos
nem os vivos
porque escreve por linhas tortas
e ignora a dor
dos filhos teus
que dele os são
também.

segunda-feira, 22 de maio de 2006


PRECE DA PRIMEIRA AURORA

naquele quarto, esquecia o medo
era criança demais pra ser notado
achava que deus tinha ouvidos cheios de cera
e enormes olhos de vidro

rabiscava palavras que antecediam murmúrios
seus dedos acolhiam pequenos lamentos
frágeis círculos na arte de sonhar mundos
e cores que ninguém sabia

tinha brinquedos dos quais jamais se separava
forte-apache, autorama, fura-fura
todas as árvores do fundo do quintal
e os bichos imaginários feitos de nuvens

naqueles dias a infância chegava cedo
antes mesmo das sombras que o sol trazia
não havia desamor nem desespero
e não se morria dia após dia